Maldição


Esta crônica é uma obra meramente ficcional, qualquer semelhança com pessoas, lugares ou fatos reais é mera coincidência.   


    Há três meses estou isolada. E o que mudou? Nada! Sempre estive só, mas agora me vejo impossibilitada de camuflar a obviedade de minha vida que é a verdade de que ao longo de quase meio século não consegui construir boas relações de amizade nem manter os vínculos das relações familiares, cujos efeitos profundos me foram nada saudáveis, e todos a quem amei se distanciaram de mim ou talvez nunca tenham se aproximado de fato e suas lembranças para mim não passam de fragmentos da minha imaginação, daquilo que eu gostaria que tivesse acontecido, de como eu gostaria que as coisas tivessem sido, mas que simplesmente não foram nem de longe tal como desejei.
    Hoje, em meio ao medo generalizado de ter a vida abreviada por conta de um vírus, de uma gripe com graves consequências ou apenas por conta da crueldade do ser humano que nega o tratamento adequado no período em que a vida teria grande chance de ser salva, me pergunto se partilho desse temor e é claro que mesmo vagando sozinha por este mundo, ainda assim, gostaria de ter mais meio século pela frente, mas não temo perder a vida, apenas não desejo isto.
    O meu medo é terminar minha jornada, minha andança por este mundo, desidratada se comparada a como eu era quando entrei nele, quando lá no início tinha a maravilhosa certeza de que este mundo nos foi dado como um presente, de que pertencemos a algo maior e de que é por ele e para ele que devemos dedicar nosso potencial e que aquele desejo inato de justiça, aquela alegria em compartilhar, aquela vontade de ajudar e aquela ânsia de ter um próximo para com ele poder se realizar é exatamente o que eu tenho medo de perder para sempre.
    Dizem que estão tirando nossa humanidade e acredito nisso. Há, sim, pessoas que têm de fato esse propósito, talvez por serem tão frustradas, não entendam que só é possível se realizar com o outro, sem o qual não há medida, não há parâmetros, não há a menor possibilidade de reconhecer e perceber o que somos ou o que nos tornamos. E é claro que esse exercício nem sempre é algo reconfortante e aí, se podemos fugir para um café na esquina ou para uma caminhada na praça ou para um jogo de carta com alguns colegas o fazemos sem pensar duas vezes, mas agora querendo ou não, muitos de nós estão sendo forçados a encarar suas vidas e talvez isto assuste muito mais do que esta peste chinesa, pois ouvir o eco dos nossos pensamentos, sentir na pele, nos ossos os efeitos colaterais dos nossos arrependimentos e saber que não temos como voltar atrás, tampouco continuar de onde paramos é como uma praga, uma maldição.
    Quando foi que o mundo ficou tão ruim? O que foi que eu fiz ou não fiz para que isto acontecesse?
    Estamos já todos doentes. Doentes de alma, vazios de crenças naquilo que de fato nos eleva, naquilo que poderia nos salvar. Estamos doentes e isolados pelo medo e covardia que nos acomete diante de todo o mistério que não compreendemos nem sabemos como explicá-lo. Estamos fracos e degenerados por termos nos esquecido de como devemos viver uma vida. Estamos infelizes por estarmos apenas fugindo da morte e condenados a viver uma vida sem propósito. Estamos amaldiçoados e esta maldição não vem da China, vem das profundezas de nossas almas caídas, vem do nosso esquecimento.

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