A Micose Chinesa


Esta crônica é uma obra meramente ficcional, qualquer semelhança
com pessoas, lugares e fatos reais
é mera coincidência.


Naquele dia, lá pelas 4 da tarde, o telefone tocou:
— Alô.
— E aí, irmãozinho, tudo bem com você? Você sumiu das redes, mando mensagem e nada. Como é que está a vida aí no seu bunker
— Opa, quem é vivo sempre aparece, ou liga. Como é que você está? Esses dias, estava pensando em vocês aí. Como estão se virando?
— Ah, rapaz, está complicado, esse negócio de dar aulas em casa é um saco, se por um lado a gente não tem que acordar cedo, pegar carro e enfrentar um trânsito dos diabos, a gente acaba trabalhando muito mais, porque são tantos os detalhes que haja paciência. Além do mais, ficar preso desse jeito é terrível, a gente vai ficando num estado de nervos que nem dá para falar.
— É, meu amigo, é uma loucura o que estamos vivendo, mas me conte, vocês estão podendo ir ao mercado, ir de uma cidade à outra ou a cana está mesmo dura?
— Aqui eles fizeram o lockdown, mas eu até acho que foi certo porque os números de mortes estão absurdas. Minha mulher nem está dormindo direito porque é tanta desgraça que passa na TV que a coitada está desesperada. Mas esta semana eles começaram a liberar algumas coisas, mas parece que as pessoas foram para a praia, não respeitaram as regras e foram para a areia, aí bloquearam tudo de novo. Pô, essa gente é fogo, não respeita nada, será que não vê o perigo que é esse vírus?
— Mas espere aí, como assim, se pisar na areia pega o vírus e se ficar no calçadão não? Será que estamos falando, na verdade, de uma micose chinesa?
— É, não sei. Putz, kkkkkk. Eu sei lá, mas que tem um monte de gente morrendo, tem.
— Será mesmo? Aqui na minha terra, se você não chegar no hospital com a cabeça fora do corpo, se morrer, estará no laudo o raio do vírus chinês. Aí fica difícil confiar, você não acha?
— É complicado. E agora tem a máscara, quem sair sem máscara é multado. Mas tem que ser assim, não dá para viver como se nada estivesse acontecendo.
— É sério isso? — O tom de voz foi subindo. — A porcaria dessa máscara, o “novo cabresto”, essa droga é tão fina que dá até para assoprar uma vela. Ah, tenha dó! Eles restringem o acesso às lojas, mas na porcaria da fila do banco, aquele amontoado de gente, está tudo certo? E você acha mesmo que a gente tem de viver dessa maneira? Olha, quer saber, é por essas e outras que não tenho mais rede social, nem droga nenhuma. Eu não concordo com nada disso, acho uma tremenda manipulação, uma atitude canalha de uma gente que só quer destruir o governo federal e extorquir todo o dinheiro que puder do poder executivo às custas da vida de inúmeras famílias e empresas que serão destruídas e, enquanto isso, ainda tem gente retardada que defende um troço desses.
— Calma rapaz, também não é assim, a saúde em primeiro lugar.
— Que saúde que nada, ninguém pensa na saúde de ninguém, só pensam é na grana que podem gastar sem licitação, enchendo os burros de dinheiro que é meu, é seu, é de todos nós. Será que você não consegue ver isso? E a gente tenta alertar as pessoas, divulgando as notícias que realmente interessam e vem o raio das “agências de checagem” me dizer o que é verdade ou não. Ora, vá para o inferno!
— É mas tem muita fakenews.
Fakenews coisa nenhuma! Pelo amor de Deus! Que raio de canal você assiste, hein? Continue assim acreditando nessa conversa fiada e ignorando o controle social que estão fazendo para ver o que acontece.
— Calma, rapaz, calma.
— Calma droga nenhuma! — Já aos berros. — Quer saber, eu pensei que esse maldito vírus chinês atacasse o sangue, as veias, o pulmão, sei lá, mas estou vendo que ataca mesmo é o cérebro.
— Calma, rapaz, eu acho que a minha mulher é que está certa, isso tudo servirá, no fim, para que as pessoas melhorem, sejam menos materialistas, mais solidárias.
— Ah, sim, — o tom de voz bem calmo — eu vou fazer você se lembrar disso caso perca o emprego e fique numa pindaíba daquelas sem poder comprar nem um acém moído que a matéria não importa, dinheiro não importa, trabalho não importa, só importa a saúde, que saúde eu gostaria de saber, pois não acho possível uma pessoa vivendo de vento ser saudável, mas eu devo mesmo estar errado, certo está o seu governador, o meu, o despachante chinês, e a sua mulher.
— Você está sendo irônico, né?
— O que você acha? Só me restou isso, ser eu mesmo enquanto posso. Não deveria estar surpreso.
— Mas você acha o quê? Não existe o vírus?
— É claro que existe e mata, até porque até o remédio foi politizado, um absurdo!
— É, mas não foi comprovado cientificamente.
— Então tá, — sem perder o controle — vamos parar por aqui.
— É, meu irmãozinho, a sua sorte é que eu gosto muito de você.
— É, esse sempre foi o seu problema, muito amor e pouco juízo.
— Aqui, qualquer hora eu ligo para saber se está vivo. Se cuida!
— Espero ansioso, será sinal de que sobrevivi. E cuidado com a micose chinesa. Um abraço na patroa. Se cuida.
        Desligou, jogando longe o celular e sacudindo a cabeça.



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