Ato Final

Eu sempre imaginei como seria o meu último dia neste mundo de Deus. Para falar a verdade, nunca pensei que seria um dia triste para mim, mas sim um dia um tanto nostálgico, porque sendo eu quem sou, seria inevitável olhar para trás sem me lamentar pelas coisas que não terminei ou que simplesmente deixei para lá, embora soubesse que rapidamente esta nostalgia, este mar de lamentações cederia espaço para uma última apreciação daquilo pelo qual realmente vale a pena viver.

Sempre tive a certeza de que saberia exatamente o dia da minha morte e que nesse dia, pouco antes do ato final, sozinha estaria numa praia sentada na areia de frente para o mar num fim de tarde quente e alaranjado sentindo pela última vez o meu cheiro preferido, que é o cheiro de maresia, e que ao inspirar profundamente esse cheiro dos mares, ganharia uma sobrevida até que pudesse voltar para casa, preguiçosamente, para só então dar um fim nisso lá pela madrugada, que para mim sempre fora a melhor hora para pôr um fim nas coisas. Ainda na areia me perderia no balanço das ondas e me deixaria embalar pelo ritmo tranquilizador daquela imensidão salgada cheia de humores inconstantes, mas que, por solidariedade a mim no meu último dia aqui, estaria em sua mais perfeita calma só para me mostrar que não se deve temer a morte e nem tampouco se revoltar contra ela. Então, me lembraria de todos a quem amei, sentindo saudade pela última vez. E assim, quando ao pôr do sol a tarde se resfriasse, eu me despediria de um mar de coisas e voltaria para o meu lar me sentindo leve, bem leve.

No caminho para casa compraria um pão quentinho e assim que abrisse a porta iria direto para cozinha passar um café fresco para acompanhar aquela delícia que é um pão com manteiga, sem queijo, sem geleia, sem nada, apenas aquela massa recém-assada com a manteiga derretida, várias e várias vezes espalhada num ritual que, pena, se acaba.

Tomaria um banho demorado, deixaria o cabelo secar naturalmente com o vento morno de uma noite de verão, escolheria um filme repetido, é claro, pois estaria decidida a partir com boas lembranças e não arriscando uma nova decepção. E como num dia que antecede um dia de folga, não precisaria seguir uma rotina tão rígida e, sendo assim, abriria mão do jantar e prepararia uma tábua de frios para acompanhar a cerveja gelada e meus tão preciosos amendoins. Sempre estive certa de que morreria saciada.

Eis que o fatídico dia chegou e quando acordei, logo que abri os olhos, meu primeiro pensamento que há anos era “quero café” surgiu em minha mente tão nítido, quase audível e foi “eu vou morrer hoje”.

Não fiquei assustada, mas decepcionada talvez porque mais uma vez a vida insistiu em me surpreender e me contrariar. Não, eu não poderia me sentar na areia de frente para o mar, pois o desgraçado do prefeito e do governador decretaram lockdown e seria impossível para mim, sem carro, ter que me deslocar de ônibus num último ato de rebeldia para ir para a praia mais próxima a uma hora e meia de distância. É, a vida tinha me levado da orla marítima para a montanha. A sorte é que ainda tinha um resto de pão francês que poderia esquentar para o café da tarde, mas teria que secar o cabelo. O imbecil do prefeito resolveu nos prender em meados de março e, como loucura de político safado perdura indefinidamente, já era fim de maio, quando as manhãs já surgem esbranquiçadas e começamos a ter a sensação que o nosso nariz vai cair, assim, também teria de substituir a cerveja por vinho tinto e, bom, a tábua de frios ficaria para outra vida, mas comeria todos os amendoins que pudesse e morreria de rir assistindo minha comédia favorita, a mesma que tinha visto tantas e tantas vezes. Estaria sozinha, sim, mas não por opção, apenas por imposição de uma gente que não vale nada e que, longe de estarem preocupados com a saúde de quem quer que seja, nos condenam a morrer isolados, cheios de tédio, de depressão e de raiva, muita raiva, porque mesmo sabendo que morreria dessas causas naturais que agonizam o homem de hoje, partiria indignada só por saber que em meu atestado de óbito estaria impresso “morreu de atraso em maio de 2020 de COVID-19”.

Sim, me aconchegaria na minha poltrona, sentiria o calor não de uma noite de verão, mas da minha lareira e seguiria assim até a madrugada, quando, enfim, partiria até satisfeita de deixar para trás um mundo enlouquecido, cheio de pessoas que não conseguem mais manter o vínculo com a realidade, pessoas vazias de tudo, ocas, próprias para repercutir os mandos e desmandos dos ditadores da nova era. E, para meu consolo, partiria sabendo que dentro de alguns dias os vizinhos a quem tanto tentei convencer, finalmente, entenderiam, perceberiam que, sim, havia algo de podre no ar.

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